A PSICANALISE E O ESTRESSE

07-01-2013 19:43

 

Começo por enfatizar que o termo ESTRESSE não faz parte da terminologia psicanalítica, embora freqüente muito o discurso dos analisantes, que a ele se referem em diferentes contextos de sofrimento subjetivo, em particular o da angústia, apesar de não terem muito claro ao que é mesmo que estão se referindo. Há um uso generalizado e indiscriminado dessa expressão, no qual é confundida com um desgaste emocional diante de conflitos psíquicos que insistem, que se repetem e que, em psicanálise, são chamados de compulsão a repetição[2].

 Tudo indica que essa confusão se deve à vulgarização de um termo que foi, originalmente, importado da Física para a Medicina e a Biologia, e depois, destas, para a Psicologia e Sociologia. Aí, ao estresse físico passaram a se superpor o estresse psíquico e estresse social.

De qualquer forma, o quadro não deixa de se referir a uma sintomatologia orgânica, embora possa ter causas também psíquicas, como fica ilustrado nas seguintes definições[3]:

  • O estresse (Síndrome Geral de Adaptação) é uma ocorrência fisiológica, é uma atitude biológica necessária para a adaptação do organismo a uma situação nova, situação de agressão física, ou situação entendida como ameaça;
  • O estresse refere-se a uma síndrome geral de adaptação (SGA), ou seja, ao conjunto de reações orgânicas, no nível dos sistemas nervoso, endócrino e imunológico, em resposta a estímulos internos e/ou externos, que podem ser tanto de ordem física quanto psíquica.

Como se vê, embora podendo ser causada por estímulos psicológicos, trata-se de uma síndrome orgânica, biológica, que afeta o corpo em escala que vai desde um estado de alerta, passando por uma resistência (no caso de estresse contínuo), até a exaustão ou esgotamento. É por isso, então, que ela não faz parte do campo da Psicanálise, na medida em que esta não se ocupa do corpo, pelo menos não do corpo biológico.

O objeto da Psicanálise é o inconsciente. Nele, as coisas, de um modo geral (inclusive o corpo), são tomadas em termos de suas representações, que se articulam em três registros, ou seja, o real (irrepresentável), o simbólico (linguagem/conceitos) e o imaginário (fantasias). Essas representações se instituem, basicamente, nas relações intersubjetivas.

Por isso, minha contribuição aqui é a de trazer algumas considerações rápidas e gerais[4] sobre a natureza desse inconsciente, e sobre como o estresse poderia ser pensado em relação a ele.

Pois bem, o inconsciente refere-se a uma instância da subjetividade que, como o nome aponta, não está acessível, mas é determinante na vida das pessoas – determina sua visão de mundo, sua identidade, seus ideais, suas escolhas amorosas, sociais, de trabalho e, inclusive, de sua forma de adoecer fisicamente. Ele é o efeito do encontro da natureza do sujeito humano (do real do seu corpo) com o simbólico, com a cultura. Esse encontro abre uma espécie de brecha, de distância entre sua condição de “ser natural” e de “ser de linguagem” imerso na cultura. É nessa  brecha que se institui o inconsciente, que, portanto, já nasce numa perspectiva de defasagem, de algo que está faltando; já nasce com uma tensão original, ou estrutural.

Junto com o inconsciente, nasce o desejo humano, que é aquilo que orquestra a subjetividade, que organiza o psiquismo – um desejo que nada tem a ver com instinto sexual. Sua natureza é justamente a de ser anti-natural, ou seja, ser completamente afastada do biológico, inserindo-se no campo do impossível, do inatingível, do “sempre por alcançar”, e onde os objetos de satisfação são da ordem das representações – o que instaura uma dinâmica de tensão estrutural e permanente[5]. Nesse campo, a “energia sexual”libido própria do ser humano, perpassada por essa condição de “ser de cultura” – é administrada pelo desejo, dentro de um processo que não é exclusivamente orgânico ou fisiológico, mas é pulsional.

Em Psicanálise, chama-se de “pulsãoo conceito de alguma coisa que é intermediária entre o somático e o psíquico. Ela se apóia na necessidade biológica para transformá-la em outra coisa, em algo que pode ser satisfeito até, ou especialmente, com palavras – e isso é o desejo, que, para se viabilizar, dinamiza-se num “processo pulsional”, e não fisiológico.

Esse processo caracteriza a busca de satisfação humana voltada para objetos que se afastaram de sua relação com as necessidades biológicas e ficaram impregnados por sua relação afetiva com o outro, a começar a relação com a mãe –  primeiro outro da criança –, que  se constitui como matriz simbólica da intersubjetividade. Essa relação faz com que a necessidade se transforme em demanda de amor, ou em demanda de reconhecimento, quer dizer, em apelo afetivo dirigido ao Outro.

Nessa passagem, onde aquilo que se quer precisa ser dito, precisa ser nomeado – e nomeado com palavras cujo sentido é externo[6] ao sujeito –, alguma coisa se perde. Alguma coisa fica como mítica, pois estará sempre relacionada a algo que não existe, a “algo a mais” [o acréscimo afetivo]  que veio na primeira experiência de satisfação, quando a satisfação foi imediata e a redução da tensão foi direta e plena, não precisou ser pedida.

Dessa perda, desse impossível de ser reencontrado ou revertido, institui-se o desejo, em sua condição de desejo inconsciente, eternamente insatisfeito, o que imprime, molda, determina a subjetividade, de tal forma, que ela terá sempre um caráter de alienação. Aí, também os sentidos que o sujeito irá dando a si mesmo –  à sua identidade, à suas necessidades, ao seu corpo, e às coisas de um modo geral –  ficam impregnados desse sentido externo[7]. Em outras palavras, a subjetividade se constitui dentro de um caráter de exterioridade radical e estrutural – exterioridade, ou alteridade, onde o desejo só pode exprimir-se através dessa demanda de amor, demanda de reconhecimento – Demanda que faz com que, quando se diz, por exemplo, “tenho frio”, muitas outras coisas estejam, aí, sendo pedidas.

Bem, para o que nos interessa aqui, ou seja o estresse, o mais importante disso tudo, a meu ver, é esse caráter de alienação – de exterioridade estrutural da subjetividade, na medida em que isso caracteriza um campo de tensão, de ansiedade, a qual, em Psicanálise, é chamada de angústia .

Enquanto sinônimo da ansiedade, que é fisiológica, a angústia é a versão subjetiva do estresse. Ela é o afeto subjetivo que regula os processos pulsionais. É o afeto que decorre dessa divisão subjetiva, dessa exterioridade, onde o sentido vem de fora, e o sujeito fica à mercê do Outro. Ele comparece, predominantemente, nas turbulências das relações intersubjetivas, e implica perda de sentido, implica o momento em que não se consegue nomear alguma coisa.

Tal como no estresse, a angústia pode chegar a pontos intoleráveis, fazendo uma pessoa adoecer não só psiquicamente, mas também fisicamente.

Diferente da ansiedade, que é provocada por ameaças concretas, a angústia é acentuada por coisas do campo subjetivo, coisas geralmente da ordem da perda de amor, da perda de reconhecimento, da ordem do desamparo afetivo.

Aí, o sentido da angústia ou melhor o não sentido, pois ela se torna crucial exatamente nos momentos em que um sujeito se perde de seus sentidos – é da ordem da singularidade de cada um, que por isso lhe imprime reações particulares, que vão desde a tristeza, passando pela depressão, a mania, as somatizações, as doenças psicossomáticas, as doenças orgânicas, e, até o suicídio.

A partir dessas colocações, e para concluí-las, parece-me imprescindível diferenciar o quadro subjetivo de um quadro físico do estresse, ressaltando três pontos:

 

1 – A noção de realidade

Em termos da subjetividade, a noção de realidade – essa realidade à qual um sujeito deve se “adaptar” quando há um estímulo “estressor” – refere-se à realidade psíquica.

Para a Psicanálise, a realidade como tal não pode ser apreendida. Ela passa por um entrelaçamento com as dimensões do Simbólico e do Imaginário, o que faz com que tenha contornos próprios para cada sujeito, de acordo com sua historia particular.

É o caso, por exemplo, da realidade de um atentado, que não é a realidade de um atentado para um homem bomba; ou, da realidade de um elevador, que não é a realidade de um elevador para um claustrofóbico; ou ainda, a realidade imposta pela globalização, que não é a mesma vivida por todos. Aí, por mais que as pressões impostas ao sujeito pela modernidade ou pós-modernidade, por exemplo, aumentem seus conflitos, a atribuição de valores aos acontecimentos da realidade, tomando-os ou não como ameaçadores e estressantes, vai depender da constituição da subjetividade de cada um.

 

2 – A noção de corpo

Esse corpo, que é “ameaçado pelas circunstâncias estressoras”, do ponto de vista subjetivo, refere-se ao corpo representado, fruto da interação subjetiva sujeito/outro.

Aí, basicamente, o corpo é um signo (significante) que intermedia as relações intersubjetivas, onde o que agride é da ordem da interpretação do que se passa nessas relações. Nesse sentido, o que é vivido como agressão depende muito mais do agredido que do agressor.

Assim, por exemplo, o corpo ameaçado é o corpo não desejado, é o corpo não idealizado, é o corpo desamparado, é a espinha no rosto, é o cabelo arrepiado, é a careca que brilha, é o nariz grande, é o  pinto pequeno..., enfim, é corpo que, para além das necessidades, é regido pelas pulsões (sexuais), pela demanda (de amor) e pelo desejo (sempre de outra coisa).

 

3 – A noção de tratamento

O campo da Psicanálise tem uma relação particular com a noção de tratamento – do tratamento subjetivo –, que não se confunde com o da Medicina. Neste último, trata-se de doenças, trata-se de um saber sobre as doenças de tal forma que se possa preveni-las e/ou curá-las, trata-se de um saber sobre o qual o médico é o portador e o sujeito é o paciente.

Na clínica psicanalítica, no discurso analítico, a lógica é outra. O saber em questão é o saber do inconsciente, é o saber do próprio sujeito, e a noção de tratamento se refere a um processo que se orienta pelo próprio analisante, pelo sentido que este dá aos seus sintomas, e não pelo sentido que o analista poderia lhes atribuir.

Aliás, se existe uma idéia que define bem uma experiência analítica, essa é a de permitir a um sujeito reencontrar seus próprios sentidos, o sentido de seus sintomas[8]. Afinal, os sintomas são estruturados em função da exterioridade subjetiva, na qual o sujeito se perdeu de suas próprias referências, na qual sua relação com o outro se tornou excessivamente dependente, na qual ele se perdeu de seu desejo (no desejo do Outro) e ficou prisioneiro de demandas internas e externas – a excessiva demanda de amor ou a excessiva demanda dos parceiros, dos familiares, dos “chefes”, etc., enfim, do outro de modo geral. É isso que lhe é estressante.

Com essa perspectiva, o tratamento analítico não visa a doença, mas o doente; visa, senão desconstruir as amarras que o simbólico e a cultura imprimem ao sujeito, e que lhe são estruturais, pelo menos, permitir que ele assuma a responsabilidade por suas próprias questões (identificações, demandas, escolhas, doenças, conflitos, etc), o que se traduz por uma “liberdade”, ou “distensionamento” imprescindível.

Isso faz com que o sujeito consiga prescindir de reações orgânicas destrutivas, exatamente, por uma elaboração dos motivos psíquicos subjacentes a tais reações – elaboração que nem sempre é consciente –, o que se faz, exclusivamente, através de uma escuta onde aquilo que conta é o que é contado, inclusive do sintoma físico, enfim, de uma escuta que privilegia o sujeito no seu não senso e não o seu ego, ou o seu sintoma.

E para concluir finalmente, trago uma definição de estresse dada por uma analisante, recentemente, depois de ela ter chegado se queixando de estar muito estressada, e eu lhe ter perguntado sobre o que estava chamando de estresse, ao que ela respondeu:

“É a minha falta de capacidade de fazer coisas, diante de um volume enorme de coisas a serem feitas”, e acrescentou: “É horrível estar aquém do que esperam que eu faça. Isso me pressiona !”.

 Quando eu lhe disse que existia aí a vivência de uma pressão externa que se somava a uma pressão interna, ela disse:

 “Pois é, pressão mais pressão vira combustão” !

Acho que isso ilustra bem o campo onde as questões são tomadas pela Psicanálise, ou seja, o campo das representações, o campo dos deslocamentos e condensações, o campo das metáforas e metonímias, onde a necessidade pode ser de afeto e a fome, de amor, enfim, o campo do INCONSCIENTE.

[1] Texto preparado para debate interdisciplinar (Medicina, Psicanálise e Sociologia), realizado em 20 de agosto de 2003, no auditório da Cultura Inglesa, Brasileira.

 

[2] Que, em Freud, está relacionada à pulsão de morte.

[3] Retiradas de sites da Internet, autorizados pela OMS.

[4] O que sempre é problemático, pois não tem como não incorrer em reducionismos.

[5] O ser humano, ou a humanidade, por si só já é estressante.

[6] Externo, porque vem do código da mãe, que é quem atribui sentido às necessidades de uma criança. Por exemplo, um choro que é interpretado como sendo fome, quando poderia ser frio.

[7] Idem.

[8] A interpretação analítica apenas pontua aonde e como os sentidos, ou não sentidos, vão aparecendo na fala do analisante. Ela jamais introduz um sentido, ou uma referência do analista na estruturação sintomática desses sentidos, embora possa haver produção de novos sentidos para o analisante, a partir de intervenções do analista que tenham um efeito metafórico. Por exemplo, a pontuação de algum significante ou o corte de alguma palavra, ou mesmo o corte de uma sessão, que consigam equivocar um velho sentido.