ANOREXIA E A ESTRUTURA NEURÓTICA

03-07-2013 21:43

ANOREXIA E A ESTRUTURA NEURÓTICA

FRANCISCO CARLOS SILVA RAMOS

PSICANALISTA CLINICA

UMA EXPLORAÇÃO ÁS ESTRUTURAS

Esse artigo tem o objetivo de explorar a relação do sintoma da anorexia, que se apresenta na estrutura neurótica, com o desejo. Para tanto, retomamos o conceito de desejo em Freud e a articulação que Lacan estabelece entre a necessidade, a demanda e o desejo. A anorexia como expressão de um comer nada está em foco. Nada como falta, como expressão desejante de um sujeito que pede que o Outro olhe em outra direção que não ele, ou seja, que ele dirija seu olhar para além dele.

 

Com as descobertas da psicanálise, surge uma nova concepção de homem a partir dos ensinamentos de Freud. Habitado por um novo saber do qual ele tem notícias a partir dos sonhos, atos falhos, chistes e sintoma, o homem não possui mais a primazia da consciência, surgindo uma nova instância psíquica que determina de forma peculiar seus atos e pensamentos: o inconsciente.

Dando voz às histéricas, Freud vai tomando contato com as leis que regem o inconsciente, com as características deste, e com a presença de um sofrimento naquele que fala. O sintoma passa a ter um estatuto diferente do vigente no saber médico, onde aparece como um sinal de que algo no corpo não está funcionando conforme o esperado organicamente, requerendo, assim, medicação e eliminação imediata. O sintoma freudiano tem valor de enigma, sendo uma formação do inconsciente que expressa uma relação de compromisso entre as exigências pulsionais e o julgamento crítico. É, sobretudo, uma satisfação pulsional, uma mensagem onde atuam o deslocamento e a condensação das representações inconscientes.

O sintoma sobre o qual nos debruçamos nesse artigo é a anorexia, que se apresenta na neurose, e, como nos mostra a epígrafe citada acima, é definida por Lacan como o ato de comer nada, e não como o ato de não comer, como muitos poderiam pensar.

A anorexia foi primeiramente definida por Naudeau, em 1789, como “uma doença nervosa acompanhada de uma repulsa extraordinária pelos alimentos” (apud Bidaud 1998, p.11). Já entre 1868 e 1873, o termo anorexia nervosa aparece nas obras do inglês William Gull “definida como privação – em caráter privado – do apetite” (id). É interessante observarmos que o método utilizado como tratamento nesses casos era o isolamento terapêutico. A paciente era retirada de casa e internada em um quarto onde permanecia sozinha, só tendo contato com o médico. Por que era justamente a separação da paciente de seu meio o tratamento mais indicado? Eis uma questão que nos intrigou desde o início dessa pesquisa: aquela da relação entre a anorexia e a separação.

A anorexia mata 15% dos jovens acometidos por essa sintomatologia, sendo a doença compulsiva que mais mata no mundo (Fux, 2002). A compulsão aí presente é emagrecer a qualquer custo, e, muitas vezes, ela parece não se constituir como uma mensagem endereçada ao Outro, possuindo a mudez própria da pulsão de morte. Apostamos, porém, que desse sofrimento pode surgir uma demanda endereçada ao analista, movimento que se faz necessário para a realização do tratamento analítico. E a questão que colocamos é, então: como dar voz a ela.

O interesse por esse tema surgiu a partir do atendimento clínico de uma paciente anoréxica (18 a) que chega ao consultório trazida pela mãe e encaminhada pelo médico o qual dizia “não saber mais o que fazer com o caso”, visto que a paciente se encontrava em um estado “deplorável” e, mesmo assim, se recusava a comer. Ele nada podia fazer diante dessa recusa. Foram poucas sessões, mas houve tempo suficiente para que essa fala nos instigasse a respeito de várias questões que foram se apresentando. A anorexia surgiu concomitantemente ao início da vida sexual da paciente e ao despertar dos conflitos com a mãe que não aprovava seu namoro. A relação com o corpo, o incômodo que a paciente sentia diante do olhar da mãe e o modo como a comida se fazia presente em suas relações são destaques de suas associações, as quais, a partir da análise, se faziam ouvir, gerando alguns questionamentos. A paciente reconheceu que no dispositivo analítico algo novo, diferente da escuta médica, com a qual encontrava-se acostumada, estava sendo possibilitado pela fala. O que seria? Talvez a possibilidade da paciente se intrigar com seu mal comum. Do que ele diz? Para quem?

A relação entre o sujeito e o nada na anorexia se faz presente nesse artigo a partir do discurso dessa paciente. Frases como “não tenho vontade de nada”, “preciso comer nada”, “nada me agrada”, dentre outras, chamaram nossa atenção, gerando um interesse em saber que nada é esse que aparecia de forma tão freqüente nesse discurso. O que nos intrigou foram as diferentes possibilidades de o sujeito se relacionar com o nada, de se colocar diante do nada, de positivá-lo, ou seja, fazer dele um objeto. O nada ganha forma de objeto e, investido como tal, passa a ter um lugar prioritário na economia libidinal do sujeito.

Sabemos que através do discurso social, a palavra anorexia fornece ao sujeito a possibilidade de que ele se identifique com o significante “sou anoréxica”, mascarando a relação particular que ele possui com seu sintoma. É buscando essa singularidade que iremos aprofundar a relação da anoréxica com o nada, com o desejo. Apesar de não nos debruçarmos sobre a relação entre a anorexia e o gozo, visto a necessidade de realizarmos um trabalho sucinto, sinalizamos para sua existência.

Em busca de um primeiro contato com o tema da anorexia, realizamos uma pesquisa bibliográfica onde foi encontrada uma grande diversidade de artigos e livros publicados. Tal diversidade está relacionada, sobretudo, com o modo como a anorexia é abordada, o lugar teórico a partir do qual ela é vista. Dentre os mais freqüentes, destacamos o viés social, onde a anorexia é tida como o resultado de uma cultura que só valoriza o corpo magro, dando a este o título de um ideal feminino. Sendo assim, a pressão da mídia, a busca de aceitação na relação social e a identificação a um modelo feminino são temas trabalhados nessa vertente. Não negamos os efeitos que o ideal de um corpo magro possa ter sobre o sujeito de uma forma geral, mas pensamos ser mais interessante nos perguntarmos por que alguns sujeitos desenvolvem a anorexia e outros não, se todos estão, de alguma forma, sob o efeito dessas mensagens. Ou seja, preferimos nos indagar sobre o que há de peculiar na relação do sujeito com seu sintoma anoréxico. Nesse sentido, não nos detemos nesse viés social.

 A relação entre a anorexia e o nada foi também pinçada das afirmações lacanianas. Dentre estas, citamos, mais uma vez, aquela que figura no Seminário 4 (1956/57) onde afirma que “a anorexia mental não é um não comer, mas um comer nada”(Lacan, 1956/57, p.188, grifo do autor).

 Seguindo essa articulação inicial, onde mostramos os diferentes lugares de onde a anorexia pode ser estudada, não nos restringimos aos artigos médicos que trazem a anorexia como um distúrbio alimentar, um sintoma orgânico no qual o sujeito não estaria implicado, e cujo tratamento na maioria dos casos é a obrigatoriedade de comer juntamente com uma ação medicamentosa (a mesma utilizada em casos de depressão), exigência que, se não efetuada pelo paciente, pode indicar a possibilidade de internação. Aqui, é o corpo físico que está em jogo e não o corpo sexuado da psicanálise. O sintoma deve ser eliminado rapidamente, não possuindo valor de mensagem, ou seja, o paciente não é convocado a falar do que sofre, mas, pelo contrário, sua boca deve se manter cheia, sendo esta a prescrição médica.

Para entendermos o estatuto da anorexia a partir de um viés psicanalítico temos que tocar em um ponto fundamental: o desejo.

 Buscando a origem desse conceito em Freud, a partir da experiência de satisfação, Lacan toma um sonho relatado em “A Interpretação dos sonhos” (1900, p.180) como modelo para analisar a estrutura do desejo.

Uma analisando de Freud, que possuía conhecimento de seus desenvolvimentos teóricos, diz a seu analista que não entende como ele pode afirmar que o sonho é a realização de um desejo, se, em seu sonho, justamente o que não se realiza é o seu desejo. Relata, então, a paciente: queria oferecer uma ceia, mas não tinha nada em casa além de um pequeno salmão defumado. Pensei em sair e comprar alguma coisa, mas então lembrei-me que era domingo à tarde e que todas as lojas estariam fechadas. Em seguida, tentei telefonar para alguns fornecedores, mas o telefone estava com defeito. Assim, tive que abandonar meu desejo de oferecer uma ceia (Freud, 1900, p. 181).

 

O desejo que Freud observa nesse sonho é o de ter um desejo insatisfeito. A partir das associações da paciente, outros elementos aparecem como o pedido que ela faz ao marido para não lhe trazer caviar, apesar de sua enorme vontade de comê-lo. Ou seja, ela pede que ele não a satisfaça. “O desejo da histérica de ter um desejo insatisfeito é significado por seu desejo de caviar: o desejo de caviar é seu significante” (Lacan, 1958/1998, p. 627). Além disso, não havia salmão defumado, prato predileto de uma amiga por quem o marido se interessava, apesar de sua magreza, e que havia expressado o desejo de ir jantar na casa da paciente.

Sem o prato principal, não havia como realizar o jantar e satisfazer o desejo da amiga: manteria a amiga magra para afastá-la de seu marido. O desejo da paciente seria o caviar? Mas o caviar ela também não quer. “Seu desejo de caviar é um desejo de mulher satisfeita, e que justamente não quer estar” (Lacan, 1958/1998, p. 631). Com efeito, Freud afirma que essa mulher é muito satisfeita pelo marido em suas necessidades (Freud, 1900). É recusando um alimento que a bela açougueira introduz uma falta em sua posição de mulher satisfeita. A presentificação dessa falta, dessa recusa, é condição para que ela continue desejando.

O amor é justamente essa falta dada ao Outro para que ele a preencha. E é isso que está por trás de toda a demanda, mascarado no pedido da satisfação de uma necessidade. Pode ocorrer que o Outro, no lugar disso que ele não tem, que lhe falta, coloque justamente a comida, ou seja, “empanturra-a (a criança) com a papinha sufocante daquilo que ele tem, ou seja, confunde seus cuidados com o dom de seu amor. É a criança alimentada com mais amor que recusa o alimento e usa a sua recusa como desejo (anorexia mental)” (Lacan, 1958, p. 634). Assim, dizendo não à demanda da mãe, a criança pede que ela olhe em outra direção que não ela própria.

Sem fazermos a redução do sintoma anoréxico à estrutura histérica, observamos pontos em comum entre ambas. Se a paciente de Freud pede ao marido que não traga caviar para se manter insatisfeita, mostrando que o seu desejo é de manter o desejo insatisfeito, também na anorexia o sujeito não come, ou melhor, come o nada, mantendo seu desejo insatisfeito. O desejo presente na anorexia é um desejo de nada, como nos diz Lacan. Recusando o objeto da necessidade, a anoréxica demanda o amor, ou seja, exige que o objeto não traga consigo apenas a marca da necessidade, mas que seja signo de amor.

Lacan nos diz que a relação do sujeito com o objeto deve ser lida freudianamente (Lacan, 1959/60, p.114). Ela emerge em uma relação narcísica, imaginária, uma vez que o objeto aparece de maneira intercambiável com o amor que o sujeito tem por sua própria imagem. É nessa relação imaginária entre o eu e o objeto que o eu se faz de objeto para o Outro. Mas esse objeto se distingue daquele visado no movimento da pulsão o qual possui a característica de ser um objeto parcial. Entre o objeto estruturado por uma relação narcísica e das Ding, que possui uma relação com o objeto da pulsão, há uma diferença, um hiato, que permitirá surgir o objeto do desejo.

É no “Projeto para uma psicologia científica” (1950 [1985]) que Freud faz um primeiro esboço do que ele denomina desejo, ponto que será essencial retornar para iniciarmos o estudo lacaniano da articulação entre a necessidade, a demanda e o desejo. Ao formular uma primeira hipótese de funcionamento do aparelho psíquico, Freud postula a existência de estímulos endógenos. Estes são definidos como uma excitação interna que necessita de uma ação específica que atue sobre ela, já que nenhuma descarga – gritos e movimentos - pode produzir resultado aliviante.

 De acordo com o princípio de constância, qualquer aumento na excitação é sentido como desprazer, e este desconforto – a fome no exemplo freudiano – requer para ser aplacado, a interferência de um agente externo. É necessário, então, uma alteração no mundo externo que, como ação específica, só pode ser promovida de determinadas maneiras.

 

Ela se efetua por ajuda alheia, quando a atenção de uma pessoa experiente é voltada para um estado infantil por descarga através da via da alteração interna. Essa via de descarga adquire, assim, a importantíssima função secundária da comunicação, e o desamparo inicial dos seres humanos é a fonte primordial de todos os motivos morais (Freud, 1950 [1895], p.370).

 

Freud atribuiu a essa experiência o complexo do ser humano próximo – Nebenmensch -, formado pela impressão deixada por essa ajuda alheia recebida. Esse complexo se divide em dois componentes: um deles produz uma impressão por sua “estrutura constante e permanece unido como uma coisa (Ding), enquanto o outro pode ser compreendido pela atividade de memória” (Freud, ibid, p.384), ou seja, pode ser representado.

A partir do complexo do próximo – Nebenmensch -, Freud articulou em um só tempo o que é o ‘à parte’ e a similitude, como signo de separação e identidade. Das Ding é justamente a parte do complexo que é isolada pelo sujeito como estranho – Fremde -, desconhecido. Das Ding como estranho constitui esse primeiro exterior, em torno do qual se orienta todo o encaminhamento do sujeito, sua referência em relação ao mundo do desejo (Lacan, 1959/60, p.69).

Vemos que, se em um segundo momento, ao sentir novamente o desconforto, o sujeito alucina o objeto que diminuiu essa excitação. É apenas a ausência dessa satisfação esperada que leva o sujeito ao abandono da tentativa de alcançá-la por meio da alucinação, tentativa guiada pelo princípio de prazer. O aparelho psíquico é, então, levado a considerar as circunstâncias do mundo externo, e empenha-se para efetuar nele uma alteração real, surgindo assim um novo princípio de funcionamento mental: o princípio de realidade.

Ao falar do assujeitamento do sujeito ao desejo do Outro, Lacan trabalha a estreita relação entre demanda e desejo. A demanda figura como possibilidade de indicar o aparecimento do desejo a partir de um mais além. Isso porque “o desejo está obrigado à intermediação da fala” (Lacan, 1957-58, p.369); é nos espaços entre os significantes que ele faz sua morada. Se, em um primeiro momento, a criança depende da fala do Outro, do sentido que ele dá ao seu grito, como demonstra a experiência de satisfação, alienando a estrutura de seu desejo à estrutura da demanda, em um segundo tempo, reconhece um desejo para além dessa demanda recebida do Outro.

 No nível da demanda, há, entre o sujeito e o Outro, uma situação de reciprocidade, ou seja, tanto o desejo do sujeito depende inteiramente de sua demanda ao Outro, como o que a Outra demanda também depende de um posicionamento do sujeito. O sujeito percebe a importância de atender ou não a essa demanda feita pelo Outro, o que é ilustrado com a angústia que a filha suscita na mãe quando não come. Assim, ao conceber o campo do Outro como marcado pelo significante, Lacan coloca a possibilidade de o sujeito se reconhecer também como aquele que se encontra submetido às leis da linguagem. “Há sempre algo que resta para além do que pode satisfazer-se por intermédio do significante, isto é, pela demanda” (Lacan, 1957-58, p.379). Destacamos, portanto, que a linguagem evidencia a “função desse desejo do Outro, no que ele permite que a verdadeira distinção entre o sujeito e o Outro se estabeleça de uma vez por todas” (Lacan, 1957-58, p.371).

O homem fala e, por isso, suas necessidades, o que ele carece, aparece sempre através da linguagem, nas demandas que o sujeito dirige ao Outro (Lacan, id.). A partir dos mecanismos próprios da linguagem, sabemos que a fala retorna sempre para o sujeito de forma invertida, alienada na fala do Outro.

A necessidade só aparece alienada na demanda, a qual, por sua vez, se articula na cadeia de significantes. Sendo assim, podemos concluir que “qualquer coisa que se dê para a necessidade será sempre interpretada em termos de demanda de amor” (Clastres, 1990, p.51). Já que toda demanda é, antes de tudo, demanda de amor, o objeto da necessidade é sempre obtido como objeto signo de amor; o alimento é tomado na relação do sujeito com o Outro como moeda amorosa. A partir da função da necessidade, o que a criança realmente busca é o amor, o dom do que não se tem.

É a mãe, como Outro primordial, que fornece uma interpretação ao grito do sujeito e demanda que ele aceite esse sentido dado por ela. A mãe traz em si esse Outro, que pode ou não atender a demanda do sujeito, se situando além da possibilidade de suprir as necessidades daquele. A demanda do sujeito é regulada pelo jogo de presença – ausência da mãe, ou seja, é preciso que o objeto falte em algum momento para que o sujeito possa demandar.

A demanda em si refere-se a algo distinto das satisfações por que clama. Ela é demanda de uma presença ou de uma ausência, o que a relação primordial com a mãe manifesta, por ser prenhe desse Outro a ser situado aquém das necessidades que possa suprir (Lacan, 1958b, p.697, grifo do autor).

 

 

Enquanto a necessidade está do lado do instinto, do conhecimento e da satisfação, a demanda se encontra ligada à pulsão, ao saber e a seu estado de insatisfação, ou seja, ao que humaniza o homem. Lacan enriquece essa diferenciação ao definir o instinto como um modo de conhecimento necessário para que o ser vivo satisfaça suas necessidades naturais (Lacan, 1960, p.818). Em psicanálise, porém, não se trata do instinto, e sim da pulsão, que comporta um saber que não se confunde com o conhecimento.

Se a necessidade se aliena na demanda, e se esta é dirigida a um Outro, retornando para o sujeito, a necessidade também viria do Outro, já que a noção de demanda implica que o sujeito recebe sua própria mensagem de forma invertida. “A necessidade não é mais do sujeito, é do Outro, o que obviamente a desnaturaliza de forma absoluta” (Eidelsztein, 1995, p.53).

Apesar de haver a alienação da necessidade na demanda, a demanda não anula tudo da necessidade, não a substitui completamente. É a partir da impossibilidade de sobrepor a demanda e a necessidade que surge um resto dessa articulação, a saber, o desejo. A demanda transforma tudo em prova de amor, anulando assim, “a particularidade de tudo aquilo que pode ser concebido” (Lacan, id). Essa particularidade retornará no ‘para além da demanda’. Nesse ponto, introduzimos a importante afirmação de Lacan segundo a qual o desejo está articulado à demanda, mas não é articulável em si (Lacan, 1960), dito de outro modo, só temos notícias do desejo através da demanda, que é, esta sim, articulável na cadeia de significantes. Uma questão se apresenta então: onde situar o desejo, se o sujeito é, aqui, definido a partir da articulação significante?

Lacan indica o caminho mostrando que o desejo “se esboça na margem em que a demanda se rasga da necessidade” (Lacan, 1960, p.828). O vão originário dessa articulação se deve à diferença estrutural entre a demanda e a necessidade. Enquanto a demanda se apresenta como apelo incondicional ao Outro, a necessidade introduz a impossibilidade de existir uma satisfação universal (Lacan, ibid.). Com a entrada na linguagem, o sujeito perde algo da necessidade: seu objeto particular e exclusivo, que não passa pela demanda e aparecerá como característica do desejo, pois o desejo é o que singulariza o sujeito (Eidelsztein, 1995).

Seguindo nosso raciocínio, não é a frustração de uma necessidade que mantém o desejo, ou teríamos que admitir a existência de desejo nos animais, os quais também estão sujeitos à frustração da necessidade. O desejo é indestrutível e nenhuma satisfação obtida através de um objeto real pode preencher a falta do sujeito. É assim que Lacan afirma que “mesmo o desejo da criança nunca está ligado à pura e simples satisfação natural” (1956-57, p.186). Quando Anna Freud, ainda pequena, após passar um dia inteiro com fome, sonha com todas aquelas guloseimas - chegando a exclamar, enquanto dormia: “Anna Freud, molangos, molangos silvestres, omelete, pudim” (Freud, 1900 p. 164) -, esses objetos já aparecem como transcendentes, “já estão na ordem simbólica e eles aparecem no sonho como interditos” (Lacan, 1956-57, p.186). O que esse sonho nos mostra é o desejo em seu estatuto de insaciável, de insatisfeito.

É através do sintoma, aqui representado na relação peculiar do sujeito com o alimento ofertado pelo Outro, que o sujeito tenta dar um sentido ao desejo do Outro, fazendo uma equivalência entre o alimento e esse desejo. Assim, o sujeito também põe à prova o lugar que ocupa para o Outro, transformando o alimento em moeda de troca na busca por uma resposta sobre o desejo do Outro.

Apesar de afirmarmos que, nesse sentido, o sintoma da anorexia poderia ser entendido como uma posição desejante do sujeito, já que ele introduz um não, um espaço entre ele e o Outro, não podemos nos esquecer que essa saída não é um enfrentamento real da falta do Outro S (A/), e sim uma ilusão de que caberia realmente ao sujeito introduzir, de modo onipotente, a falta no Outro. Mesmo sendo uma postura desejante, o gozo está fortemente presente nessa sintomatologia. Um gozo que, a princípio, relacionamos com os representantes do objeto a, seio e nada, e que é capaz de levar o sujeito à morte. Apostamos que será através de um trabalho analítico que a falta no Outro será reconhecida e trabalhada, gerando uma mudança no posicionamento do sujeito frente esse Outro. O que a anorexia ilustra e nos ensina é a radicalidade da insatisfação do desejo e, mais, que a satisfação de nenhuma ‘necessidade’ é capaz de calar o desejo.

 

Alinne Nogueira Silva

 

 

Bibliografia:

 

 

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CLASTRES, Guy. A significação do falo e um comentário do ‘Kant com Sade’. Salvador:

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FREUD, Sigmund . Obras completas ESB, Rio de Janeiro: Imago, 1996.

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__________ (1958). “A direção do tratamento e os princípios de seu poder”. In: Escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1998.

__________ (1958b). “A significação do falo”. In: Escritos.Rio de Janeiro: Jorge Zahar

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_____________ (1959-60) O Seminário. Livro 7: A ética da psicanálise. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1997.

_________ (1960) “Posição do Inconsciente”. In: Escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor,1998.